Introdução
Registro, documentação ou necessidade de expressão, sacra ou profana, o fato é que a incisão ou gravado sobre superfícies rijas está presente desde que se conhece a história do homem. É de se supor que o esforço de apropriação e revelação de seu universo, milhares de anos antes da invenção do papel e da imprensa, tenha levado o homem a uma forma de registro. Possivelmente esta intenção aliada ao gesto de gravar impregnou de características específicas aquilo que iria estruturar uma "linguagem" bem distinta da do desenho, da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema.
A troca, a comunicação e a divulgação no momento em que o homem se organiza socialmente, e especificamente com o advento dos primeiros núcleos urbanos, criaram a necessidade de encontrar um meio de multiplicação não só de texto como também de imagens. As implicações culturais e sociais que daí advieram são indiscutíveis.
A multiplicação de um original - a partir de uma matriz geradora veio romper a tradição valorativa da peça única, provocando uma renovação que iria afetar, inclusive o conceito e as avaliações estéticas. O valor de uma obra que aumenta ou diminui pelo fato de estar limitada a um possuidor privilegiado é quando muito, posta em questão. Esse valor na obra de multiplicação aumenta na medida do seu desdobramento, uma vez que patrocina a possibilidade de um convívio sem barreiras geográficas, sociais e culturais, com imagens, conceitos permanentemente transformadores da realidade. Assim a gravura vem expressar os anseios dos homens, sociais e culturalmente distanciados e diferenciados, consignados deste modo o seu alto sentido democrático.
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Maria Bonomi
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A0076
Maria Anna Olga Luiza Bonomi (Meina, Itália 1935). Gravadora, escultora, pintora, muralista, curadora, figurinista, cenógrafa, professora. Maria Bonomi vem para o Brasil em 1946, fixando-se em São Paulo. Estuda pintura e desenho com Yolanda Mohalyi (1909-1978), em 1951, e com Karl Plattner (1919-1989), em 1953. No ano seguinte, inicia-se em gravura com Lívio Abramo (1903-1992). Realiza a sua primeira individual em São Paulo, em 1956. Nesse ano, recebe bolsa de estudos da Ingram-Merrill Foundation e estuda no Pratt Institute Graphics Center, em Nova York, com o pintor Seong Moy (1921). Em paralelo, cursa gravura com Hans Müller e teoria da arte com Meyer Schapiro (1904-1996), na Columbia University, também em Nova York. De volta ao Brasil, freqüenta a Oficina de Gravura em Metal com Johnny Friedlaender (1912-1992), no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ, em 1959. No ano seguinte, em São Paulo, funda o Estúdio Gravura, com Lívio Abramo, de quem é assistente até 1964. A partir dos anos 1970, passa a dedicar-se também à escultura. Produz painéis de grandes proporções para espaços públicos. Em 1999, defende a tese de doutorado intitulada Arte Pública. Sistema Expressivo/Anterioridade, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP.
Comentário Crítico
Para Maria Bonomi, o trabalho com a xilogravura é uma experiência que oferece ilimitadas possibilidades de criação artística. Ao expor na 5ª Bienal de Paris, em 1967, na qual recebe o primeiro prêmio, luta para que as gravuras sejam expostas em paredes, e não em balcões ou vitrines, como páginas de livros, o que era usual na época. Assim, modifica-se a relação do público com a gravura, e também do artista no exercício de gravar.
O gravador lida sempre com questões relacionadas à matriz e à imagem impressa: ao trabalhar madeira ou metal, o registro é diferente daquele obtido no papel. Nas matrizes estão as marcas da relação do artista com a matéria, do impulso e dos gestos que criam a obra. Para a gravadora Renina Katz (1926), Maria Bonomi revela em seus trabalhos alguns desses jogos fascinantes do universo da gravura. Em 1972, apresenta as Solombras, transparentes e coloridas, moldadas em poliéster com base em matrizes de madeira. Já em 1976, realiza os Epigramas, obras fundidas em metal com base em peças de barro, em que produz linhas e sulcos, explorando cheios e vazios e revelando a essência do gesto do gravador.
A artista insiste, ao longo de sua carreira, nas grandes tiragens, que permitem o acesso às obras pelo maior número de pessoas- para tanto utiliza também a litografia. Inova ao produzir em grandes formatos (alguns trabalhos com mais de dois metros de largura), demonstrando o desejo de conferir maior vigor e impacto estético às gravuras. Outro ponto importante em sua obra é a utilização da cor em tonalidades variadas e inesperadas.
Além de gravuras a artista continua produzindo relevos em concreto ou metal, dispostos em vários espaços públicos de São Paulo como na Igreja Mãe do Salvador, no Palácio dos Bandeirantes e na estação de metrô Jardim São Paulo. Nesses murais, Maria Bonomi parte da experiência como gravadora, explorando o grafismo resultante dos sulcos da gravura em madeira. As texturas e a gestualidade, são transferidas para o concreto ou metal. Problematizando o mito da peça única, a artista também desenvolve projetos na área de vestuário (camisetas, gravatas, echarpes).
Maria Bonomi é presença importante no cenário da gravura brasileira. Nas palavras de Lívio Abramo: 'Vitalidade, veemência, paixão, ousadia formal são as características da obra gráfica desta artista que soube transmitir às suas gravuras a paixão de seus sentimentos e a densa expressividade da síntese formal'.1
Notas
1 Livio Abramo, texto do catálogo Maria Bonomi Xilograbados Litografia, Centro de Estudos Brasileiros (Asunción, Paraguay), citado em BONOMI, Maria. Xilografias de Maria Bonomi. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
Nascimento
1935 - Meina (Itália) - 8 de julho. Naturaliza-se brasileira em 1953
Cronologia
Gravadora, escultora, pintora, muralista, curadora, figurinista, cenógrafa
1944 - Itália, Suíça e Portugal - Vive nesse países
1946 - São Paulo SP - Vive nessa cidade
1947 - São Paulo SP - 1º Prêmio de Desenho do Colégio das Cônegas Santo Agostinho
1950/1956 - São Paulo SP - Estuda pintura e desenho com Yolanda Mohalyi (por sugestão de Lasar Segall), técnica de pintura com Karl Plattner e gravura com Lívio Abramo
1956 - Estados Unidos - Vive nesse país
1956/1958 - Nova York (Estados Unidos) - Recebe bolsa de estudos da Ingram Merrill Foundation para estudar com Seong Moy no Pratt Institute Graphics Center
1957/1958 - Nova York (Estados Unidos) - Faz curso de gravura com Hans Müller e de teoria da arte com Meyer Schapiro, na Columbia University
1958 - Nova York (Estados Unidos) - Cursa o Museum Training I, na New York University
1960 - Rio de Janeiro RJ - Integra a Oficina de Gravura em Metal, com Johnny Friedlaender, no MAM/RJ
1960 - São Paulo SP - Fixa residência
1960 - São Paulo SP - Prêmio Governador do Estado/APCT, figurinos
1960/1964 - São Paulo SP - Funda o Estúdio Gravura com Lívio Abramo, de quem é assistente
1965 - Prêmio Molière em cenografia e dois prêmios Saci em cenografia e figurinos
1965 - São Paulo SP - Prêmio Governador do Estado/APCT, figurinos
1972 - São Paulo SP - Prêmio Governador do Estado/APCT, figurinos
1973 - São Paulo SP - Apresenta o filme Detritos, realizado com Thomas Farkas, na 12ª Bienal Internacional de São Paulo
1976 - Realização do filme A Força da Natureza, produzido por Patrick Goetelen
1976 - São Paulo SP - Realiza tríptico em concreto para a Igreja Mãe do Salvador (Cruz Torta)
1976 - São Paulo SP - Realiza murais em concreto para o Esporte Clube Sírio e para a fachada externa do Edifício Jorge Rizkallah Jorge
1977 - São Paulo SP - Torna-se membro do Conselho de Arte e Cultura da Fundação Bienal de São Paulo
1979 - São Paulo SP - Realiza murais em concreto para o Hotel Maksoud Plaza
1979 - São Paulo SP - Grande prêmio da crítica, pela APCA
1984 - Santiago (Chile) - Executa mural, em concreto e cobre, para o Banco Exterior de Espanha
1984/1999 - São Paulo e São Bernardo do Campo SP - Elabora o Troféu Eldorado de Música (1985), Troféu Exclusivo Apetesp (1984), Troféu Serasa (1993), Troféu Carta Capital (1998/1999) e Prêmio Interação, da Mercedes-Benz (1992/1993/1994)
1987 - São Paulo SP - Realiza mural em concreto para o Banco Sudameris
1988 - Prêmio Lei Sarney à Cultura Brasileira
1988 - Troféu Oswaldo Goeldi - gravura, destaque
1989 - Liubliana (Iugoslávia - atual Eslovênia) - É curadora de gravura brasileira para a 18ª Bienal Internacional de Gravura
1989 - São Paulo SP - Realiza mural em cimento Futura Memória para o Memorial da América Latina
1994 - Ilustra o Elogio da Xilo, de Haroldo de Campos (1929 - 2003), livro-poema com situações xilográficas (edição manual)
1994 - São José dos Campos SP - Participa do júri da 1ª Bienal de Gravura de São José dos Campos
1994 - São Paulo SP - Participa do vídeo XILO VT ou Elogio da Xilo, dirigido por Walter Silveira, sobre o livro Elogio da Xilo. Apresentado na exposição Xilogravura: do cordel à galeria, no Masp
1995 - Liubliana (Eslovênia) - Realiza curadoria para a 21ª Bienal Internacional de Gravura
1997 - São Paulo SP - Realiza Páginas, escultura em alumínio gravado, para o Arquivo do Estado de São Paulo
1997 - 42º Prêmio Santista, na área de artes plásticas, modalidade/gravura
1998 - Praga (República Tcheca) - Participa do júri internacional e da curadoria de gravura brasileira para a 2ª Trienal de Arte Gráfica Inter-Kontakt-Graphic
1998 - São Paulo SP - Realiza Imigração e Substituição, dois painéis de alumínio, doados pela Serasa para o Palácio dos Bandeirantes
1998 - São Paulo SP - Realiza o painel Construção de São Paulo para a Estação Jardim São Paulo do Metrô
1998 - Prêmio Internazionale Lumière, Unupadec
1999 - São Paulo SP - Titula-se doutora pela ECA/USP com a tese Arte Pública. Sistema Expressivo/Anterioridade
1999 - Liubliana (Eslovênia) - É curadora da Seleção Brasileira na 23ª Bienal Internacionala de Gravura
1999 - Rio de Janeiro RJ - É curadora, com Renina Katz, da mostra São Paulo Gravura Hoje, dentro da mostra Rio Gravura, na Funarte
1999 - São Paulo SP - Prêmio Mário Pedrosa, pela ABCA
1999 - Liubliana (Eslovênia) - É artista representante da América Latina e membro internacional do Symposium Arts Prints at the End of Millenium
2000 - Buenos Aires (Argentina) - É curadora da 1ª Bienal Argentina de Gráfica Latino-Americana, no Museo Nacional del Grabado
2000 - México - É curadora da delegação brasileira na 12ª Bienal Ibero Americana de Arte, no Instituto Cultural Domecq
2000 - São Paulo SP - É lançado o vídeo Gravura e Gravadores, documentário dirigido por Olívio Tavares de Araújo, produzido pelo Itaú Cultural, com depoimentos da artista e de outros gravadores
2000 - São Paulo SP - Realiza painel de concreto plástico Nemeton para o Edifício Premium
Críticas
'O ornato, manifestação da composição como ritmo, expõe a emoção artística em Maria Bonomi. Em sua pesquisa, concebem-se composições monumentais, memoráveis do sulco, que se pereniza. Pois não é a figura que importa, são as direções rítmicas que os sulcos constroem. Retendo de Lívio Abramo a máxima de que o traço deixado por cada instrumento é uma linguagem, Maria Bonomi desenvolve os jogos rítmicos do traço-sulco, que é luz, luz pulsátil, luz que constrói. Já as suas primeiras gravuras a evidenciam interessada no sulco, mas também no uso: em bienal parisiense dos anos 60, ela insiste em expor a gravura na parede, lugar da pintura, contradizendo, com isso, a praxe da exibição em mesa. Pensando o uso, Maria Bonomi interroga a gravura quanto à dimensão- todavia, a composição rítmico-geométrica discute menos a dimensão do que a escala, pois, mesmo nas impressas em pequenos formatos, a composição lança a visão para fora do suporte.
O sulco é a invasão da matéria, tornada palpável pela resistência que o gravador nela encontra e à qual vence. É aqui que a emoção da gravura melhor se apreende: nos sulcos, Maria Bonomi declara sua emoção de gravar, sendo a matriz o essencial da obra do gravador, e a estampa não mais que a derivada da ação primitiva. A matriz pode ser construída tanto na madeira quanto no barro ou em outro material. Por sua vez, a matriz pode ser passada para os mais diversos suportes, como o papel, o alumínio, o poliéster, o concreto. Ir da mesa para a parede e desta para o painel de concreto implica o uso, concretizado como socialização da obra, voltada para o passante. Como os das xilogravuras, os sulcos das matrizes reproduzidas no concreto destinam-se a saguão do hotel. Com ripas e cordas, Maria Bonomi constrói os sulcos da Construção de São Paulo, gravura-relevo erguida em estação do metrô da cidade'.
Leon Kossovitch e Mayra Laudanna
KOSSOVITCH, Leon- LAUDANNA, Mayra. Gravura no século XX. In: GRAVURA: arte brasileira do século XX. Ricardo Resende. São Paulo: Itaú Cultural: Cosac & Naify, 2000. p. 32.