Introdução
Registro, documentação ou necessidade de expressão, sacra ou profana, o fato é que a incisão ou gravado sobre superfícies rijas está presente desde que se conhece a história do homem. É de se supor que o esforço de apropriação e revelação de seu universo, milhares de anos antes da invenção do papel e da imprensa, tenha levado o homem a uma forma de registro. Possivelmente esta intenção aliada ao gesto de gravar impregnou de características específicas aquilo que iria estruturar uma "linguagem" bem distinta da do desenho, da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema.
A troca, a comunicação e a divulgação no momento em que o homem se organiza socialmente, e especificamente com o advento dos primeiros núcleos urbanos, criaram a necessidade de encontrar um meio de multiplicação não só de texto como também de imagens. As implicações culturais e sociais que daí advieram são indiscutíveis.
A multiplicação de um original - a partir de uma matriz geradora veio romper a tradição valorativa da peça única, provocando uma renovação que iria afetar, inclusive o conceito e as avaliações estéticas. O valor de uma obra que aumenta ou diminui pelo fato de estar limitada a um possuidor privilegiado é quando muito, posta em questão. Esse valor na obra de multiplicação aumenta na medida do seu desdobramento, uma vez que patrocina a possibilidade de um convívio sem barreiras geográficas, sociais e culturais, com imagens, conceitos permanentemente transformadores da realidade. Assim a gravura vem expressar os anseios dos homens, sociais e culturalmente distanciados e diferenciados, consignados deste modo o seu alto sentido democrático.
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Renina Katz
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A0097
Renina Katz Pedreira (Rio de Janeiro RJ 1925). Gravadora, desenhista, ilustradora, professora. Cursa a Escola Nacional de Belas Artes - Enba, no Rio de Janeiro, entre 1947 e 1950. Tem como professores, entre outros, Henrique Cavalleiro (1892 - 1975) e Quirino Campofiorito (1902 - 1993). Licencia-se em desenho pela Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Inicia-se em xilogravura com Axl Leskoschek (1889 - 1975) , em 1946. Incentivada por Poty (1924 - 1998), ingressa no curso de gravura em metal, oferecido por Carlos Oswald (1882 - 1971) no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Muda-se para São Paulo em 1951, e leciona gravura no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand - Masp e, posteriormente, na Fundação Armando Álvares Penteado - Faap, até a década de 1960. Em 1956, publica o primeiro álbum de gravuras, intitulado Favela. A partir dessa data, é docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU/USP, onde permanece por 28 anos, e na qual apresenta teses de mestrado e doutorado.
Comentário Crítico
No início da carreira, Renina Katz dedica-se à pintura e realiza retratos e paisagens do Rio de Janeiro. Na década de 1950 sua obra denota preocupações sociais com um caráter de denúncia. Revela o universo dos trabalhadores urbanos e de personagens marginalizados, como nas várias gravuras que tratam do tema dos retirantes (1948/1956) ou no álbum Favelas, 1956. Suas xilogravuras apresentam um caráter realista, uma mensagem direta e grande concisão de elementos formais e têm grande requinte técnico, sendo comparadas, por alguns críticos, com a produção da gravadora alemã Käthe Kollwitz (1867 - 1945). A emoção é expressa graficamente na contundente oposição entre os pretos e brancos que confere às cenas o aspecto dramático, como ocorre em Retirantes, s.d.
Renina Katz deixa os temas ligados ao realismo social a partir da metade da década de 1950, quando sua obra passa gradualmente a adquirir um caráter não figurativo, embora permaneça nela a relação com a paisagem. A artista passa a enfatizar, cada vez mais, o jogo de transparências em suas obras. Inicia a produção em litogravura na década de 1970. A maioria de suas gravuras são sugestões de paisagens, concebidas como lugares da memória. Na opinião do crítico Roberto Pontual, quando suas gravuras pendem para o caráter lírico, Katz aproxima-se da atmosfera transparente e musical das obras de Fayga Ostrower (1920 - 2001).
Na série Lugares, 1981, a gravadora parte da representação da paisagem urbana, também como um lugar da memória, inspirando-se no poema de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987) intitulado Paisagem: Como Se Faz. Ela afirma que 'a cor surgiu como uma necessidade na evolução do trabalho, e a multiplicação das matrizes trouxe a possibilidade de explorar os vários valores tonais'.1 Para obter as superfícies translúcidas, típicas em suas obras, Renina Katz grava muitas matrizes e aplica várias cores, realizando diversas impressões para obter uma única gravura. Em trabalhos posteriores, comoCosmos 2, 1992, ou Limite 2, 1993, destacam-se a sutil luminosidade e o surpreendente uso da cor.
Notas
1 Citado em KATZ, Renina. Renina Katz. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997, p. 125.
Nascimento
1925 - Rio de Janeiro RJ - 30 de dezembro
Cronologia
Gravadora, litógrafa, pintora, desenhista, ilustradora, professora
1946/ca.1947 - Cursa xilogravura com Axl Leskoschek (1889 - 1975) na Fundação Getúlio Vargas - FGV
1947/1950 - Estuda pintura na Escola Nacional de Belas Artes - Enba
ca.1950 - Licencia-se em desenho pela Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
1950 - Cursa gravura em metal no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro
1952/1955 - Muda-se para São Paulo e leciona desenho e gravura no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand - Masp
1953/1963 - Leciona composição no curso de formação de professores de desenho da Fundação Armando Álvares Penteado - Faap
1956 - Publica seu primeiro álbum de gravuras, Favela
1956/1988 - É professora de programação visual na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU/USP
1968/1972 - É professora de meios e métodos de representação na Escola Superior de Desenho Industrial - ESDI
1970/1972 - É professora de exercícios de duas dimensões, no curso de cultura visual contemporânea, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ
1979/1982 - Mestrado e doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU/USP
1980 - É professora de meios de reprodução no curso de arquitetura e urbanismo da Faculdade de Belas Artes
1989 - Prêmio Lei Sarney à Cultura Brasileira/Pintura
1997 - A Editora da USP lança o livro Renina Katz, coleção Artistas da USP
1999 - Com Maria Bonomi, realiza curadoria da mostra São Paulo Gravura Hoje, no evento Rio Gravura
2000 - É lançado o vídeo Gravura e Gravadores, documentário dirigido por Olívio Tavares de Araújo e produzido pelo Itaú Cultural, com depoimentos da artista e outros gravadores
Críticas
'Mas essa artista tão peculiar, de uma capacidade de contensão de tremenda carga explosiva, estava gestando-se a si mesma. O resultado atual desse processo encontra-se nas paredes da Galeria Astréia. São pinturas. Da gravura tão boba, ao desenho caprichado, chegar a esta pintura-soco-no-estômago não terá sido brincadeira. Seria igualmente indevido chamar aquilo de figura ou abstração. Há das duas coisas em cada quadro, porque em cada um deles o que importa é o tratamento da cor ditado por uma alma dilacerada, mas que ao invés de cair em transe histérico, faz arte. Inventa, afunda-se no mais fundo mistério da química colorística, retém-se de uma maneira pouco habitual em gamas e escalas de cores que por isso mesmo alcançam um timbre e um volume muito raros. Em cada quadro está o mundo estatelado. O mundo parou naquele momento. Percorrida a lógica íntima das motivações da autora, o quadro que resulta é, para o vedor, um desafio, uma interrogação, um infinito delimitado. Quem for capaz que mergulhe nele e dele extraia as riquezas que ali foram depositadas. Essa exposição é a afirmação de uma pintora que dificilmente deixará de cumprir o seu destino. O que é uma conquista e uma condenação'.
Arnaldo Pedroso d'Horta
D'HORTA, Arnaldo Pedroso. Pintora cumpre seu destino: Renina Katz. (Curriculum do artista).
'(...) Renina elabora, e demonstra que sabe explorar o campo que escolheu. A atual exposição coloca-a solidamente na posição de um dos expoentes desta espécie de escola cheia de surpresas, que é o realismo fantástico (...). A fantasia de Renina Katz volta-se indisfarçadamente para o metafísico. (...) Dentro do seu clima, que costuma exigir os efeitos de perspectivas acentuadas e apontar para distâncias impossíveis, os espaços 'cheios de vazio' que provocam inquietação ou desamparo, Renina paradoxalmente procura uma quase bidimensionalidade- ou quando não é este o caso, uma terceira dimensão de pouco alcance físico, mas ainda assim eficaz como idéia plástica. É pela charada geométrica e quase matemática que as composições de Renina procuram atingir a atmosfera metafísica. A clareza da geometria, ela transforma em mistério. A forma que hesita entre o ovo, o círculo e a elipse, por exemplo, e que fende planos para melhor ceder à gravidade, funciona como um enigma que facilmente passa do plano visual para um plano mais interior. Tudo que é visão, tudo que é plástico, é ajudado por um emprego desinibido mas bem equilibrado de cor'.
Jayme Maurício
MAURÍCIO, Jayme. Renina: refinamento metafísico. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 mar. 1970.
'O domínio dos meios e as questões instrumentais, os problemas de desenho, cor e organização de espaço, o rigor observado em cada detalhe e a integridade da artista são conhecidos. Falar da importância da professora e de sua personalidade generosa não acrescentaria muito ao que já se conhece de Renina. (...) A obra de Renina é um permanente encontro e confronto com o mundo atual. É claramente mais que uma atividade, pois transforma-se em modo de ser, em modo de deixar aparecer uma visualidade preexistente. Torna-se possível na medida em que é um fenômeno em que tudo se manifesta em constante estado de nascimento e indagação. Artista e professora adquirem nesse ponto absoluta identidade. Renina ensina a perguntar- portanto, a fazer nascer. Não se questiona se há contraposição a um pensamento racional e, menos ainda, um não reconhecimento de seu valor. O rigor manifesto na obra demonstra, por si mesmo, ser esse um entre outros assuntos. Trata-se de uma obra que vincula concepção de vida com experiência vivida. Trata-se de criar, a cada momento, um racionalismo tão significativo quanto sutil'.
Pedro Luiz Pereira de Souza
RENINA Katz: litografias. Apresentação de Pedro Luiz Pereira de Souza. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes, 1989.
'Nos anos 50, a relação da gravura e da política é direta: o aparecimento dos clubes de gravura está associado à orbitação de grande parte da esquerda intelectual em torno do Partido Comunista. Figura-se uma cena, e Renina Katz é representante dessa direção, na qual a paisagem pôde ser encarada por alguns como resquício romântico, só se impondo em circunstâncias estabelecidas. A cidade domina, e o operário supera o camponês atrasado: essas teses são correntes na esquerda e têm efeito. A cidade, indústria, é o foco do progresso e Renina faz xilogravura em que o nordestino desembarca na Estação do Norte- ela o desenha, faminto sempre, nos fins de semana, como afirma, não sem ironia, d'après nature. O realismo socialista de Renina parte da observação e, embora não estilize a fraqueza ou a força, a fome e o fastio, não dá crédito a um naturalismo prévio às convenções que o produzem. Embora não estilize, sabe não ter a visão daquele a quem desenha. Humanizando os desembarcados, dá-se conta de sua perspectiva de classe, que acaba por expeli-la para outra arte. Não sendo estilizado, seu realismo não é expressionista, dominando, na cena e na figura, o registro do visível, em que a emoção é considerada graficamente, crispada nos pretos e brancos da gravura. A deformação não vem, pois, de fora, como dramatização, porque já está nos homens da consciência possível de Renina, idealista tese goldmaniana. A emoção que surge da contundente oposição dos brancos e dos pretos abarca as figuras, mas também as cenas, tratadas sinteticamente, sem que, por isso, a dimensão enumerativa seja omitida, na qual se estatui a paisagem. Tendo rompido, em 1956, com a militância política e seu realismo socialista, Renina Katz vai abrindo passagem para uma gravura singular, que não é, porém, fácil ou pacífica. Marco dessa abertura é a pesquisa que faz com a cor na litografia e no metal, que pressupõe a reflexão em tese de doutoramento na qual estuda o cromatismo na serigrafia. Renina está, pois, em posição dupla: em relance, sua gravura propõe a abstração, mas a contemplação detida demonstra ter sido tomado o caminho da paisagem, a qual, como natureza, não a abandona nunca'.
Leon Kossovitch e Mayra Laudanna
KOSSOVITCH, Leon e LAUDANNA, Mayra. Sobre o político. In: Gravura Brasileira. São Paulo, 2000. p. 14.