Introdução
Registro, documentação ou necessidade de expressão, sacra ou profana, o fato é que a incisão ou gravado sobre superfícies rijas está presente desde que se conhece a história do homem. É de se supor que o esforço de apropriação e revelação de seu universo, milhares de anos antes da invenção do papel e da imprensa, tenha levado o homem a uma forma de registro. Possivelmente esta intenção aliada ao gesto de gravar impregnou de características específicas aquilo que iria estruturar uma "linguagem" bem distinta da do desenho, da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema.
A troca, a comunicação e a divulgação no momento em que o homem se organiza socialmente, e especificamente com o advento dos primeiros núcleos urbanos, criaram a necessidade de encontrar um meio de multiplicação não só de texto como também de imagens. As implicações culturais e sociais que daí advieram são indiscutíveis.
A multiplicação de um original - a partir de uma matriz geradora veio romper a tradição valorativa da peça única, provocando uma renovação que iria afetar, inclusive o conceito e as avaliações estéticas. O valor de uma obra que aumenta ou diminui pelo fato de estar limitada a um possuidor privilegiado é quando muito, posta em questão. Esse valor na obra de multiplicação aumenta na medida do seu desdobramento, uma vez que patrocina a possibilidade de um convívio sem barreiras geográficas, sociais e culturais, com imagens, conceitos permanentemente transformadores da realidade. Assim a gravura vem expressar os anseios dos homens, sociais e culturalmente distanciados e diferenciados, consignados deste modo o seu alto sentido democrático.
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Tomie Ohtake
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A0389
Tomie Ohtake (Kyoto, Japão 1913). Pintora, gravadora, escultora. Vem para o Brasil em 1936, fixando-se em São Paulo. Em 1952, inicia-se em pintura com o artista Keisuke Sugano. No ano seguinte, integra o Grupo Seibi, do qual participam Manabu Mabe (1924 - 1997), Tikashi Fukushima (1920 - 2001), Flavio - Shiró (1928) e Tadashi Kaminagai (1899 - 1982), entre outros. Após um breve período de arte figurativa, a artista define-se peloabstracionismo. A partir dos anos 1970, trabalha com serigrafia, litogravura e gravura em metal. Surgem em suas obras as formas orgânicas e a sugestão de paisagens. Na década de 1980, passa a utilizar uma gama cromática mais intensa e contrastante. Dedica-se também à escultura, e realiza algumas delas para espaços públicos. Recebe, em Brasília, o Prêmio Nacional de Artes Plásticas do Ministério da Cultura - Minc, em 1995. Em 2000, é criado o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.
Comentário Crítico
Após breve passagem pela pintura figurativa, Tomie Ohtake define-se pelo abstracionismo. No início da década de 1960, emprega uma gama cromática reduzida, com predominância de duas ou três cores. Leva o olhar do espectador a percorrer superfícies em telas que muitas vezes lembram nebulosas. Utiliza, em algumas obras, pinceladas 'rarefeitas' e tintas muito diluídas, explorando as transparências. Posteriormente, surgem em seus quadros formas coloridas, grandes retângulos, que parecem flutuar no espaço. Ao longo da década de 1960 emprega mais freqüentemente tons contrastantes. Revela afinidade com a obra do pintor Mark Rothko (1903 - 1970), na pulsação obtida em suas telas pelo uso da cor e nos refinados jogos de equilíbrio. A artista explora a expressividade da matéria pictórica, mais densa, em texturas rugosas, ou mais diluída e transparente.
Em gravura, começa trabalhando com serigrafia e litogravura, a partir dos anos 1970. Para a maioria dos críticos, esse aprendizado revitaliza sua obra pictórica. Surgem em suas telas a linha curva e as formas orgânicas. Embora de caráter abstrato, ocorre em alguns quadros a sugestão de paisagens: montanhas ou curvas de rios. Intensifica o dinamismo e a sugestão de movimento. Em obras realizadas a partir da década de 1980, emprega uma escala de cores mais quentes e contrastes cromáticos mais intensos.
Dedica-se também à escultura, e realiza, por exemplo, a Estrela do Mar (1985), colocada na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Propõe intervenções em espaços urbanos, produzindo esculturas de grandes dimensões, como as 'ondas' em homenagem aos oitenta anos da imigração japonesa, instaladas na avenida 23 de Maio, em São Paulo. Em esculturas mais recentes, trabalha com tubos delgados, que estabelecem sinuosos percursos no espaço.
A artista enfatiza, em entrevistas, a importância da arte oriental, em especial a japonesa, em sua pintura, afirmando que 'essa influência se verifica na procura da síntese: poucos elementos devem dizer muita coisa'.1 Da tradição japonesa, Ohtake diz inspirar-se na noção de tempo do ukiyo-e (imagens do mundo que passa), arte que revela cenas de uma beleza fugaz. Pesquisa constantemente as possibilidades expressivas da pintura: as transparências, as texturas e a vibração da luz. Declara fazer uma pintura silenciosa, como a cidade em que nasceu. Em suas obras, revela um intenso diálogo entre a tradição e a contemporaneidade.
Notas
1 Citado em Ohtake, Tomie- ARRUDA, Vitoria (Coord.). Exposição retrospectiva Tomie Ohtake. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2000, p. 65.
Nascimento
1913 - Kyoto (Japão) - 21 de novembro
1940 - Naturaliza-se brasileira
Vida Familiar
Mãe dos arquitetos Ruy Ohtake e Ricardo Ohtake
Formação
1920/1935 - Kyoto (Japão) - Realiza estudos básicos
1952 - São Paulo SP - Inicia estudos de pintura com o artista plástico japonês Keisuke Sugano
Cronologia
Pintora, gravadora, escultora
1936 - São Paulo SP - Muda-se para o Brasil, fixando-se nessa cidade
1951 - Japão - Visita sua terra natal
1953 - São Paulo SP - Integra o Grupo Seibi, ao lado de Flávio-Shiró, Kaminagai, Manabu Mabe e Tikashi Fukushima, entre outros
1971 - Europa - Realiza viagem
1971/2000 - São Paulo SP, Rio de Janeiro RJ e Araxá MG - Realiza diversas obras públicas, como o painel pintado na empena do Edifício Santa Mônica, na Ladeira da Memória, em São Paulo (1984)- a escultura Estrela do Mar, alocada na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro (1985)- escultura em homenagem aos oitenta anos da imigração japonesa no Brasil (1988), painéis no Memorial da América Latina (1988) e na estação do metrô Consolação, em São Paulo (1991)- esculturas para o Parque Industrial da CBMM , em Araxá (1999), para o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (1999) e para a praça Professor José Lannes (2000), em São Paulo, entre outras
1974 e 1979 - São Paulo SP - Recebe o prêmio melhor pintor do ano da APCA
1983 - Rio de Janeiro RJ - Realiza cenários e figurinos para a ópera Madame Butterfly, apresentada no Theatro Municipal
1983 - Rio de Janeiro RJ - Recebe o prêmio personalidade artística do ano da ABCA
1984 - Havana (Cuba), Argentina e Uruguai - Visita esses países
1985 - São Paulo SP - Projeta cartaz e troféu para a 9ª Mostra Internacional de Cinema
1987 - Rio de Janeiro RJ - Recebe o prêmio Mulher do Ano na Arte, do Conselho Nacional das Mulheres do Brasil e Academia Brasileira de Letras
1988 - Brasília DF - Recebe Condecoração Ordem do Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores
1995 - Brasília DF - Recebe Prêmio Nacional de Artes Plásticas do Ministério da Cultura
2000 - São Paulo SP - É lançado o Instituto Tomie Ohtake, idealizado e coordenado por Ricardo Ohtake e projetado por Ruy Ohtake
2001 - São Paulo SP - É inaugurado o Instituto Tomie Ohtake
2001 - São Paulo SP - Recebe o Grande Prêmio da Crítica de Artes Visuais da APCA
Críticas
'A cor demorou a chegar. Primeiro vieram tímidas paisagens rapidamente abandonadas por uma abstração caligráfica e um mergulho numa nebulosa de cinzas, brancos e negros. Este foi um vôo profundo e demorado. A seguir, as formas começaram a crescer. (...) Tomie já usou a superfície da tela como um campo de matéria e de texturas que se articulavam, trabalhou com nuances de sombra e a fronteira de passagens de cor. Hoje tanto pode usar delicados equilíbrios de forma como arriscar cores violentas que são contidas com pulso firme. É difícil dividir as suas telas em antes ou depois ou em fases que se sucedem, pois na realidade Tomie foi pintando numa espiral ascendente. Mesmo nas primeiras telas não era a simples paisagem que a interessava. Quando chegou às texturas e à matéria, não fazia apenas o informalismo que vinha de Paris. Se chegou a formas muito construídas, isto também não significava somente uma divisão racional dos espaços. O que sempre importou em sua obra foi a própria pintura, como uma maneira de espelhar um momento de reflexão e não simplesmente para construir imagens.
(...) é difícil para quem já viu uma tela de Tomie Ohtake deixar de reconhecer os seus outros trabalhos. Mesmo que ela tenha passado toda a vida articulando elementos muito simples e delicadas superposições de cores - como muitos outros pintores num plano internacional -, a dosagem de cores e de elementos formais há muito fixou sua identidade (...).
Tomie então consegue fazer telas com uma qualidade física - a matéria é bonita, a textura é quase tátil, os contornos das formas são fortes no espaço - para tratar de coisas impalpáveis como equilíbrio, luz e sombra, movimento - o que ela sugere com curvas vertiginosas, sombreados de algumas superfícies e a maneira de articular as composições. Elementos tão ambíguos ela soluciona com aparente simplicidade, uma infatigável aplicação no trabalho e uma satisfação silenciosa no ato de pintar'.
Casimiro Xavier de Mendonça
MENDONÇA, Casimiro Xavier de. O jogo do espaço e da luz. In: _______. Tomie Ohtake. São Paulo: Ex Libris, Raízes, 1983. p. 27-31.
'A artista substitui a cópia ou a reprodução de temas ou situações conhecidas pela sugestão formal, aproximando-se assim da técnica de pintura japonesa em preto e branco, chamada sumi-e, uma marca do ´pattern ancestral´, criando uma pintura sóbria e de grande refinamento plástico-visual, pela perfeita utilização das técnicas e dos materiais: pincéis, espátulas, pigmentos. A pintora não parou simplesmente nos arranjos caligráficos, mas através das subdivisões e frações dos caracteres shodo, cria um rico repertório formal que acompanha a sua obra até os dias atuais. Tomie Ohtake, ´como autêntica pintora, não se satifaz com os padrões informais do Ocidente´, tão em moda na década de 50, como não aceita integralmente a reprodução da caligrafia oriental. A artista soma aspectos caligráficos ao informalismo da arte européia, ligando-se à sugestão formal, típica da pintura sumi-e para obter surpreendentes resultados tonais de harmonias monocromáticas'.
João J. Spinelli
SPINELLI, João J. Tomie Ohtake. In: _______. Tomie Ohtake: o antigo e o novo na obra de Tomie Ohtake.1985. f. 92. Dissertação (Mestrado) - Escola de Comunicações e Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo.
'A pintura de Tomie Ohtake se desenvolve a partir das linguagens abstratas. Assim, da tendência informal que a caracteriza em fins dos anos 50 evolui para um abstracionismo gestual explorador da espacialidade em início dos anos 60, aventurando-se por telas de maior dimensão, pesquisando a cor e texturas com uma finura que marcaria sua contribuição. E dos inícios de 60 uma série de grande poética na qual se utiliza de fluente gestualidade com sensível redução cromática - ao máximo três tons de cor quase invariavelmente. Desse período surgirá toda uma fase de sobreposição de planos em ortogonal sobre a base da tela, com o materialismo e transparência cromáticas se impondo em composições sóbrias, de caligrafia visível, já denunciando sua vocação para a manipulação de uma ampla espacialidade. A presença do geometrismo dominando forma versus fundo, sempre com um tratamento pictórico elaborado, emergirá em inícios dos anos 70, e é por essa época que se define sua predileção por suportes de superfícies quadradas de grande vastidão espacial. A curva se insinua aos poucos dominando as superfícies das telas com refinadas transparências'.
Aracy Amaral
AMARAL, Aracy (Org.).Tomie Ohtake. In: MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO: perfil de um acervo. São Paulo: Techint Engenharia, 1988. p. 307.